Com a Medida Provisória (MP) nº 984/2020 – comumente conhecida como MP do Flamengo – assinada pelo Presidente da República Jair Bolsonaro que dentre outras coisas estabelece que os direitos de transmissão de images pertencem somente ao clube – entidade de prática desportiva – mandante, provavelmente estamos diante de uma nova era de como as transmissões televisivas esportivas serão comercializadas, exploradas, e especialmente distribuídas para o público em geral no Brasil.
Nesse post não vou me ater aos possíveis fatores escusos da concepção à assinatura dessa MP, ou ao fato de que a pandemia da covid-19 foi usada como névoa de guerra para nos tirar a capacidade de perceber as reais intenções por detrás de tal MP.
A ideia do post é analisar a MP através de um olhar estritamente comercial, e ver os possíveis benefícios aos clubes e em especial as possíveis armadilhas que uma transição de clube desportivo para uma empresa de mídia em um curto espaço de tempo pode acarretar.
Minha análise parte do pressuposto que plataformas são importantes, quiçá centrais, na experiência por parte do público. Inicialmente podemos pensar que por “deter” a plataforma, o clube consegue minimizar o poder do mediador – comumente os meios de comunicação de massa tradicionais como canais de televisão – e assim ter um contato direto com o público. Mas será que o clube realmente deterá a plataforma, no sentido de desenvolver todo um sistema de distribuição (streaming) de imagem, ou somente se utilizará de sistemas de terceiros como YouTube? Será que a troca entre um meio de comunicação de massa tradicional por uma nova mídia como mediadora trará tanto benefício, ou será só uma troca de seis por meia-dúzia?
Se realmente o clube deseja desenvolver todo um sistema de streaming, será que ele estará pronto financeiramente para investir uma quantia considerável que lhe permita distribuir um conteúdo de alta qualidade? Não somente o clube terá que arcar com toda a produção da transmissão – geração de imagem em alta qualidade, produção da imagem, narradores, comentaristas, etc – mas também com a sua distribuição – codificação dos dados, packaging, acesso a content delivery networks/points of presence (CDN/PoP). Para o público que está acostumado a somente ligar a TV e sintonizar no canal para assistir a qualquer jogo, essa experiência deve seguir sem falhas. E para quem tem a experiência de assistir futebol no Premiere via Globoplay sabe o quão frustrante é quando demora para fazer o login, ou quando a qualidade da imagem cai.
Em relação ao contato direto clube-público, este tem um enorme potencial econômico na medida em que todos os dados de engajamento – quem entrou, quando entrou, quanto tempo ficou, da onde veio, para onde vai, etc etc etc – estarão nas mãos do clube, que assim poderá ter uma ideia melhor de quem é o seu fã. O potencial de monetizar esses dados estará a disposição do clube – mas será que o clube está preparado para isso? Ou será que data science e a criação de modelos de machine learning serão terceirizados tal qual a distribuição via YouTube? O quanto já é feito com todos os outros dados disponíveis sobre sócios e torcedores que vão aos jogos? Talvez esses dados nunca se transformarão em informação para qualquer tomada de decisão.
Tendo controle dessa distribuição e da plataforma também pode permitir ao clube encontrar outras formas de monetizar esse espaço/tempo. Enquanto que na medida que os clubes comercializam a sua imagem com um meio de comunicação de massa tradicional, esse passa a ser responsável por encontrar formas de vender esse produto para que se torne lucrativo. Semelhante a como outros meios de comunicação de massa tradicionais operam (ver esse vídeo sobre Attention Merchants do Tim Wu), canais de televisão fazem isso através da comercialização de espaços para anunciantes. Será que o clube estará pronto para encontrar esses anunciantes por si só? Ou será que vamos ver o mesmo sonho não realizado do naming right de estádios?
Além do mais, não podemos olhar a distribuição via televisão em isolado. Globo e outros conglomerados estão presentes em todas as outras mídias como rádio, jornais, etc. A divulgação e promoção do jogo de futebol toma conta de toda a programação nessas outras mídias, de certa forma criando a demanda por esse produto. Será que o clube ainda terá acesso a essa promoção gratuita na medida em que não existe mais interesse econômico em promover (falar sobre) o produto? Ou será que o clube estará pronto em fazer essa promoção por si só?
Como foi dito pelo David Rowe (2003) as relações esporte e mídia são de auto-reforço simbiótico na medida em que uma necessita da outra para existir na forma que conhecemos. O esporte profissional é o que é por causa dos meios de comunicação de massa, e o inverso provavelmente também seja verdadeiro.
Uma ruptura nessa relação simbiótica traz consigo um grande potencial transformador não somente na relação propriamente dita, mas em especial nos entes que formam essa relação. E rupturas são inerentemente carregadas de efeitos não intencionais. O que será dos clubes e dos meios de comunicação tradicionais é uma incógnita. Existem grandes potenciais, mas também grandes armadilhas. E historicamente os clubes não parecem prontos ou até mesmo dispostos a aproveitarem esses potenciais.